O movimento LGBT brasileiro me amava — até eu defender a liberdade de expressão
Eu já fui queridinho do movimento LGBT do Brasil. Isso acabou quando eu defendi a liberdade de expressão. Ao longo de mais de uma década na política LGBT lutando por compreensão e tolerância como estudante, biólogo e jornalista, vivenciei em primeira mão uma mudança no Brasil. Infelizmente, a mudança não foi para melhor. Gerações de trabalho árduo nos trouxeram avanços significativos em proteções legais LGBT e atitudes públicas de mais aceitação, ambas agora ameaçadas pelo abandono, por parte da classe ativista, da nuance, das abordagens baseadas em evidências e respeito pela liberdade individual. Minha história é, em microcosmo, reflexo de uma dinâmica que se desenrolou em grande parte do mundo industrializado.
A marcha das Valquírias
Em 2011, recebi uma pergunta anônima no Tumblr: “Qual a origem da homossexualidade?” Na época, eu era estudante de mestrado em genética e biologia molecular na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no início do programa de dois anos. Também era ativista, tendo cofundado a Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), por um tempo a maior organização humanista da América do Sul. Tinha acabado de sair do armário como um jovem gay na casa dos vinte e poucos anos, mas até aquele ponto eu não havia realmente usado a biologia como uma lente através da qual poderia entender minha sexualidade.
Minha resposta a esse questionador anônimo, publicada três meses após Lady Gaga lançar “Born This Way”, na maior parte resumia um capítulo sobre a genética comportamental da homossexualidade escrito pelo sexólogo J. Michael Bailey e colegas. Minha resposta também linkava para um artigo que eu havia escrito anteriormente sobre a hipótese do “bom tio” de Paul Vasey, que explica que, apesar de geralmente não terem filhos, indivíduos homossexuais ajudam a criar sobrinhos e sobrinhas e, assim, teriam valor darwiniano.
Quase dois anos depois, eu era estudante de doutorado em genética na Universidade de Cambridge, Reino Unido. A pesquisa ia bem. Eu estava estudando três tipos de bactérias capazes de mudar o sexo de insetos, aracnídeos e crustáceos e publiquei ao fim alguns artigos amplamente citados nos anos seguintes. Mas, até então, uma década de fracassos amorosos e um casamento falido (com um homem) pesavam sobre mim. Como tantos da minha geração e mais jovens, eu estava solitário e me voltava para o ativismo como remédio.
Em fevereiro de 2013, meus dois mundos de ativismo e ciência colidiram de uma boa maneira. Um famoso televangelista pentecostal brasileiro, Silas Malafaia, apareceu em um programa de entrevistas e começou a lançar bombas. Ele afirmou que a homossexualidade não tem componente genético e que 46% das pessoas gays se tornaram gays porque foram abusadas sexualmente quando crianças — a velha “hipótese do recrutamento”. O restante, ele disse, simplesmente faz uma escolha imoral. Progressistas e não-homofóbicos por todo o Brasil ficaram furiosos. Eu decidi responder.
Verifiquei aquela estatística estranhamente específica que Malafaia havia usado e encontrei a fonte original. Sem surpresa, ele estava enganado sobre o que dizia. Eu expandi o que escrevi em 2011 citando pesquisas adicionais, incluindo dados sobre estudos com gêmeos, e expliquei que havia uma diferença entre orientação sexual e identidade de gênero; tudo com uma pitada de sarcasmo e uma alfinetada no criacionismo de Malafaia. Isso resultou em um vídeo de 15 minutos que viralizou, me dando 15 minutos de fama. Amigos relataram estar em bares e ouvindo meu nome nas conversas de outras pessoas. Meu pai, para quem eu havia saído do armário um mês antes (os pais realmente são os últimos a saber), estava transbordando de orgulho ao lado da minha mãe e três irmãs. Meu supervisor de doutorado gostou do vídeo e disse que as pessoas estavam enviando e-mails para ele do Brasil pedindo que ele desse um jeito em mim, me colocasse na linha. Eu me sentia no topo do mundo. Pedalava por Cambridge ouvindo “A marcha das Valquírias" de Wagner.
Malafaia foi esperto o suficiente para não mencionar meu nome, mas ele respondeu. Ele se referiu a mim como um jovemzinho que nem havia trocado as fraldas ainda no campo da genética. Eu, por minha vez, disse à imprensa que isso era um ataque ad hominem feito sob medida para evitar abordar o conteúdo dos meus argumentos e minhas fontes científicas. Eu havia me tornado uma espécie de figura pública menor. Como resultado disso, aproximei-me de Jean Wyllys, na época o segundo deputado abertamente gay do Brasil na e o líder de fato do movimento LGBT brasileiro.
O advento da lacração
As coisas começaram a mudar por volta de 2014. Fui um dos primeiros críticos do identitarismo, ou o que no mundo anglófono chama-se coloquialmente de “wokeness”. No Brasil, nosso termo em português para isso é o verbo “lacrar”, que significa “mostrar que alguém está errado de uma forma humilhante”. Desde o início, a classe ativista emergente dedicada ao identitarismo me incomodava com sua fixação obsessiva em identidade; desconsideração por justiça, proporcionalidade ou resultados tangíveis reais; predileção por palavreado demagogo cheio de jargão; e sua propensão ao exibicionismo moral dominador.
Eu me via como feminista, mas era crítico das feministas radicais que difamavam os homens e que estavam prosperando nas redes sociais, semeando discórdia e conflito interno dentro da organização humanista que eu liderava. O deputado e líder do movimento LGBT brasileiro que mencionei, Jean Wyllys, era então um membro honorário do meu grupo humanista. Na época, ele compartilhava minha visão dessa nova escola de pensamento tomando conta do ativismo e republicou um desenho que eu fiz sobre homofobia, me elogiando por ter um “amplo repertório intelectual.”
Minha associação com Wyllys levou a um convite remunerado para apresentar uma palestra sobre a biologia da transexualidade para o Sindicato dos Professores do Estado do Espírito Santo. Após minha palestra, Toni Reis, presidente da ABGLT (Associação Brasileira LGBT), aproximou-se de mim para dizer que estava satisfeito com minha apresentação. Eu era geralmente bem recebido dentro do movimento LGBT, exceto entre a crescente coorte de acadêmicos pós-modernos e adeptos da tábula rasa, especializados em “teoria” queer “crítica” (essencialmente a versão LGBT da ideologia do identitarismo). Os teóricos queer odiaram meu vídeo viral por causa de seu suposto “essencialismo” — o rótulo que eles erroneamente atribuem a quase tudo que tem a ver com biologia, genética ou psicologia evolutiva.
Meu vídeo foi oficialmente apoiado pela Sociedade Brasileira de Genética com uma nota explícita de endosso, e analisado por diferentes estudiosos das humanidades. Dois antropólogos experientes foram simpáticos à minha posição, que, claro, nunca foi “determinismo genético”, mas uma afirmação de que a genética contribui para a sexualidade. Embora tentassem encontrar falhas nas explicações genéticas em nome do rigor acadêmico, os antropólogos reconheceram que “muitos ativistas LGBT brasileiros tenderam a apoiar o geneticista” [ou seja, minhas conclusões]. Outros estudiosos estavam menos felizes. Um artigo de “análise de discurso” publicado em retórica pós-moderna escorregadia desdenhou: “Acreditamos que tanto o pregador [Malafaia] quanto o geneticista [ou seja, eu] são pessoas ‘qualificadas’”. Observe as aspas em “qualificadas”. Quando se tratava de explicações sobre homossexualidade e bissexualidade, ironicamente, esses acadêmicos, apesar de toda a sua postura progressista, tinham muito em comum com o televangelista Malafaia. Como ele, eram deterministas culturais hostis às evidências científicas.
O pecado imperdoável de defender a liberdade de expressão
As coisas mudaram rapidamente a partir desse ponto. O liberalismo pró-liberdade de expressão da velha escola, que sustentava a luta pelos direitos LGBT desde o seu início, foi abandonado por uma nova geração de ativistas. Qualquer um, como eu, que continuou a defender a expressão livre como um direito humano indispensável, rapidamente se tornou o inimigo aos olhos dos fanáticos que tomaram o movimento.
Além dos meus escritos diários em oposição ao identitarismo, fiz três coisas que me colocaram em apuros com os ativistas. Primeiro, defendi a liberdade de expressão para o próprio Malafaia. Toni Reis, da ABGLT, e o advogado ativista Paulo Iotti tentaram usar o poder do Estado e uma interpretação intencionalmente ampla da intenção para censurar o pregador por comentários que ele fez sobre a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em 2011. A Parada exibiu arte inspirada em santos católicos. Malafaia disse que a Igreja Católica não deveria deixar isso passar em branco e deveria “cair de pau” nos ativistas. Essa expressão idiomática significa, claramente, criticar e repreender, e não usar literalmente cacetetes para subjugar os ativistas à força. No entanto, a ala autoritária do movimento LGBT preferiu interpretar as palavras do pregador como incitação à violência, um limite à expressão com o qual todo liberal concorda.
Nesse caso, Malafaia no fim conseguiu driblar a censura, mas os ativistas subsequentemente garantiram que ele e seus correligionários se dessem mal com a Justiça hoje se repetissem suas palavras devido a novas decisões judiciais que criminalizavam o “discurso de ódio”. (Mais sobre isso adiante.) Minha defesa dos direitos de liberdade de expressão de Malafaia, um fanático fundamentalista a cuja homofobia eu havia me oposto e feito nome me opondo, era, para mim, uma questão de princípio. Para o movimento, foi uma traição.
Eu me coloquei em apuros novamente com ativistas antiliberais ao defender o direito à liberdade de expressão de outro homofóbico, o falecido político Levy Fidélix. Candidato à presidência por muitos anos, Fidélix aproveitou o sistema de financiamento público de partidos do Brasil para concorrer em muitas eleições, apesar de não ter chance de vencer. Ele uma vez disse em um debate presidencial televisivo que “um órgão excretor não [se] reproduz” (uma referência ao sexo anal). Apesar do fato de não ter violado nenhuma lei, ativistas identitários tentaram puni-lo. Conseguiram, e ele foi multado pesadamente em 2017. Fidélix morreu quatro anos depois.
A gota d'água veio quando critiquei Jean Wyllys por literalmente cuspir no então candidato Jair Bolsonaro no nosso Congresso Nacional por causa das provocações homofóbicas de Bolsonaro. Embora um impulso compreensível, esse cuspe deu milhões de votos a Bolsonaro, que acabou se tornando presidente do Brasil. Por minha posição de que discursos impopulares, estúpidos e preconceituosos devem ser permitidos, Wyllys me chamou pejorativamente de “ultraliberal”, como se isso fosse um insulto. Ele também sugeriu que minhas opiniões devem ser informadas por homofobia internalizada, em vez de princípios. Iotti, sempre o advogado, apoiou Wyllys apelando para a Corte Europeia de Direitos Humanos e outras autoridades que “não aceitam esse absurdo ultraliberal individualista”. Esta é a mesma corte que, um ano depois, apoiou leis de blasfêmia e confirmou que a Áustria poderia punir uma mulher por dizer que o Profeta Maomé era um molestador de crianças porque sua esposa Aisha tinha seis ou sete anos quando se casaram. Minha relação com Wyllys só se deteriorou a partir daí. Os interessados podem encontrar muito do nosso desentendimento ainda disponível no perfil do Facebook de Wyllys.
Estatísticas falsas e ativismo judicial
Iotti e o novo movimento LGBT identitário e antiliberal conseguiram criar leis por decreto judicial, primeiro em 2019 e novamente em 2023, criminalizando o “discurso de ódio” homofóbico no Brasil por meios antidemocráticos. Para isso, os ministros do Supremo Tribunal Federal, incentivados por ativistas, agiram não apenas como legisladores, o que é inconstitucional — eles também alegaram que o grupo LGBT é um tipo de raça para classificar a homofobia como uma forma de racismo, aproveitando o fato de que o racismo é crime no Brasil há décadas. O criacionismo interpretativo claro do tipo legal é um prato que a classe ativista LGBT consome com gosto.
Como mostrei em 2022, os juízes basearam sua decisão em uma estatística falsa de assassinatos divulgada pela organização não governamental Grupo Gay da Bahia (GGB). Junto com quatro colaboradores, desmascarei essa estatística semanas antes da primeira decisão do Supremo Tribunal Federal de criminalizar a homofobia sem o processo parlamentar pelo qual um projeto se torna lei. Assim como aconteceu com Wyllys, Luiz Mott, fundador do GGB, me disse que eu tinha “homofobia internalizada” por defender princípios democráticos e direitos de expressão. Havia um padrão nessa acusação, mas o problema não era eu.
Se Jean Wyllys era o rei do movimento LGBT brasileiro e Iotti seu jagunço jurídico, Luiz Mott era e ainda é o papa. Como antropólogo e historiador, Mott fez um bom trabalho como pioneiro pelos direitos LGBT. Ele redescobriu um caso de um nativo que foi despedaçado na boca de um canhão por colonizadores franceses no século XVII no nordeste do Brasil. A vítima era gay ou trans. Mott pediu à Igreja Católica que se desculpasse pela execução — um pedido justo — mas também insistiu que esse crime por si só deveria fazer a pobre alma, “primeira vítima brasileira de homofobia”, um santo. Que audácia.
No nosso relatório de verificação de fatos, mostramos que a “estatística” de Mott alegando que quase 350 pessoas LGBT brasileiras eram mortas a cada ano por causa de preconceito era falsa. O número incluía casos incertos, como pessoas que morreram afogadas e uma leitura errada de uma manchete sobre um um casal heterossexual que foi morto por motivos que nada tinham a ver com preconceito. Mott e seus colaboradores insistem que casos como uma lésbica traficante sendo morta por seus concorrentes por território são exemplos de morte por homofobia porque a homofobia é “estrutural” no Brasil. Isso é um dogma do identitarismo (qualquer coisa ruim que aconteça a pessoas “marginalizadas” é culpa do “sistema”) usado para justificar alegações que de outra forma não fazem sentido.
Colegas verificadores de fatos e eu conseguimos confirmar a intenção homofóbica em apenas 9% das mortes que o grupo alegou serem “por homofobia” em seu relatório de 2016 — o mesmo relatório citado com credulidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Esse argumento, como mostramos, é completamente circular. Eles dizem que esses casos são resultado de homofobia porque ela é “estrutural”, e sabemos que é estrutural porque esses casos provam. Encontrei esse raciocínio em documentos oficiais, incluindo alguns publicados pelo Ministério dos Direitos Humanos. Enquanto isso, pesquisas sérias mostram que o Brasil é o segundo país menos homofóbico entre as nações de média a baixa renda. Essas ONGs lideradas pelo trabalho pioneiro de Mott estão difamando meu país como o maior assassino homofóbico do mundo, e simplesmente não é verdade. Mott reagiu de forma previsível, dizendo à imprensa que “nossos críticos têm sangue nas mãos”, enquanto reconhecia timidamente que seus dados são “incompletos.”
Jean Wyllys, enquanto isso, foi recentemente vítima de sua própria armadilha. Há alguns meses, Eduardo Leite, o primeiro governador abertamente gay do Brasil, resistiu à decisão do presidente Lula de fechar escolas militares. Wyllys, que já foi fotografado usando roupas ao estilo de Che Guevara (que fuzilava gays), afirmou que o governador Leite fez isso porque “gays que sofrem de homofobia internalizada geralmente desenvolvem libido e fetiches por autoritarismo e uniformes, especialmente se forem homens brancos”. O comentário teria custado a Wyllys uma oportunidade de emprego no governo Lula, mas, mais ironicamente, ele agora foi formalmente indiciado por discurso de ódio homofóbico pelo Ministério Público.
Wyllys e Mott podem ter certeza de que, por causa da minha postura principiológica pela liberdade de expressão, eles não correm risco de serem indiciados pelo que disseram sobre mim. Recuso-me a usar leis injustas, mesmo em meu próprio benefício. Quero que eles continuem pensando sobre seu papel no movimento LGBT brasileiro e se perguntem se o dogma identitário extremista e a defesa da censura estão funcionando para eles.
Agora, perdi quase toda a esperança de encontrar uma defesa LGBT verdadeiramente liberal na minha língua materna. A necessidade disso é bastante simples: nós, as pessoas LGBT, tivemos negadas nossas liberdades por milênios, então deveríamos pelo menos pensar duas vezes antes de pular no bonde do Complexo Industrial da Censura e normalizar restrições à liberdade individual. Em sociedades livres, os cidadãos devem ser obrigados a suportar palavras ofensivas para eles, desde que essas palavras ou expressões não chamem de forma crível para a violência ou sejam objetivamente caluniosas. Isso significa ter altos padrões para diferenciar entre ofensividade subjetiva e ameaças literais.
Enquanto livres para amar e nos casar, devemos pedir apenas tolerância uns dos outros e visar ganhar aceitação por persuasão, não por força. Se quisermos impedir que a opinião pública se volte contra nós, após décadas de progresso através de meios liberais, precisamos parar de usar a força governamental contra a liberdade de outras pessoas de pensar e falar. Seria bom lembrar que, mesmo que estejamos politicamente ascendentes hoje, os ventos políticos podem mudar. É míope erodir as normas e estruturas que possibilitaram décadas de progresso para nossa comunidade. Nosso instinto deve ser recorrer à razão e à evidência, não cair na armadilha de abusar do poder estatal, como é comum em democracias falhas como o Brasil.
Publicado em 6 de outubro de 2023